sábado, 6 de fevereiro de 2016

Um arrepio fúnebre

A gente sempre pensa que é exclusivo. Minha amiga psicanalista disse que quando somos bebês achamos que o seio da mãe é só nosso. E é um amor tão grande que dói muito quando temos de dividir aquele seio com o mundo. É a tal da falta primordial. Depois passamos a existência tentando repor aquele amor, sem sucesso, claro. Porque igual àquele nunca mais.
Filosofando com seus botões Leonora olhava a chuva forte que molhava a paisagem mineira pela janela do ônibus da Viação Aleijadinho que a levaria, finalmente, de Monte Negro até São Paulo. Pensou em voz alta: acredita que nunca saí de Monte Negro? O passageiro ao lado não ouviu. Estava com fones de ouvido. Leonora disfarçou o vácuo. Lembrou da casa da infância. Lembrou da goiabeira e da sua alegria quando ela florescia e era invadida por abelhas bem miudinhas. Leonora gostava de mexer na terra, gostava do cheiro, da textura, gostava do mistério da vida: plantava uma sementinha e brotava um pé de couve. Era bibliotecária porque teve medo de ir pra capital estudar agronomia. Foi covarde.  
Agora não. Agora não teve medo. Teria enfim sua nova vida bem longe – aceitou o convite da amiga Samira pra ficar em seu apê enquanto viajava pelo mundo. Afinal, o aborto realizado no início do casamento estava finalmente justificado. Nada mais a prendia. Nem marido nem amante. Estava totalmente livre. Tinha seis meses pra encontrar emprego e casa pra morar. E uma vida inteira pra visitar aquelas imensas livrarias...e os sebos... ir ao cinema... Tomar sorvete no Ibirapuera... Aprender a andar de bicicleta... acredita? Não sei andar de bicicleta. O vizinho de poltrona permaneceu inerte. Fechou os olhos também e se despediu mentalmente de Jurandir, o marido paraplégico que a manteve naquele relacionamento sem erotismo. Agradeceu a Anderson, o amante, pelos momentos de amor e por ter feito enxergar que ninguém é de ninguém, como cantava Cauby Peixoto. Quem imagina ter fidelidade por parte do parceiro, cônjuge, namorado, amante, ficante, amiguinho de Facebook se ilude.
Amarga você, hein Leo? Leo abriu os olhos sentindo aquela voz entrar em seus ouvidos e percorrer todos os seus vasos capilares como um arrepio fúnebre. Não era o sujeito dos fones de ouvido. Ele permanecia imóvel. Que sono! Ficou com preguiça de procurar de onde vinha a tal voz e fechou os olhos outra vez. Respondeu mentalmente: sim, já fui mais romântica. Mas agora vai ser assim. Nada de romantismo babaca. Minha prioridade é outra. Começo uma nova vida. Novinha. Vou zerar tudo. Nasci hoje.
Um tranco forte e a poltrona de Leo é esmagada pelas ferragens. Leo abre os olhos.
Sangue...fumaça... vidros quebrados... que cheiro horrível! Mas que confusão é essa? Que gritaria! Por que estão chorando? Mamãe!!! O que você está fazendo aqui?
Vim te buscar Leozinha.
Como assim, mãe? Isso é um sonho?
Depois eu explico. Vem cá meu bebê. Me dá sua mão. Vou te contar. O amor cura tudo, Leozinha. Vamos andando.
Flutuando você quer dizer, mãe.

Cúmplice, dona Ana sorri e as duas almas se abraçam.

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