segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Sons noturnos

Você sabe que está com insônia. Tenta dormir e não consegue.
Pra que insistir? Levanta logo dessa cama, porra. Essa maldita aí do seu lado ronca feito uma porca. Que nojento. Falar assim da mãe dos meus filhos. Mas é o que ela é hoje. Uma porca lazarenta, gorda, com mau-hálito. E ronca! Maldita insônia, hein? Quem mandou ir deitar mais cedo? Você já sabe que quando faz isso acorda no meio da noite com a geringonça ruminando do seu lado. Tenta dormir, vai. Fecha os olhos, reza, tenta se concentrar num único pensamento, lembra de um mantra! Não funciona. Não funciona? Como assim? Não é você o budista paz e amor? Isso. Rola de um lado pro outro. Acende a luz, bebe um pouco da água que está no copo do criado-mudo. Apaga a luz, afofa o travesseiro, e deita a cabeça sorrindo feliz e pensa: agora, vai.
Fecha os olhos, mantra – oh, mani padme rú, oh mani padme rú -, reza, sua frio, que calor da porra, joga a coberta no chão, ouve a moto que sobe a rua, o guarda-noturno apitando no final do quarteirão...lá longe, o trem de carga que passa discreto no silêncio da noite. E a mente? Um turbilhão. Milhões de pensamentos. Caralho, que saco! Agora você não sabe mais se está acordado ou dormindo porque tem a sensação de que está sonhando, mas ao mesmo tempo ouve todos os sons noturnos. Os estalidos dos móveis, e o ronco da megera, claro. Dá uma cotovelada na infeliz. Não adianta. Não adianta os cambau. No mínimo ela se vira de lado e diminui a sinfonia. O vizinho da casa ao lado se levanta para ir ao banheiro. Pela hora deve ter dado uma na mulher e agora foi se lavar. Na sequência vai ela. Parede fina do cacete. Da pra ouvir os caras no banheiro, que inferno. Fiquei de pau duro. Mais essa agora. Vai levantar? Nem tenta. Fica deitado. Larga o celular, imbecil. Conferir que horas são nesses casos só piora a sua sensação de impotência diante do seu desejo de dormir e do seu cérebro que teima em permanecer acordado.
Puta que o pariu eu preciso dormir. Levanto cedo amanhã. Amanhã? Cê tá de gozação. Num tá ouvindo o primeiro ônibus passar na rua de cima? o primeiro pio do bem-te-vi? Jesus, me ajuda! Você acabou de descobrir que tá há quatro ou cinco horas acordado quando deveria ter dormido. Bate um desespero infernal, não é? você tinha um compromisso logo pela manhã? fudeu. Não tem remédio mesmo. Que luz é essa que vem da janela? Espera um pouco. Não acredito. Já amanheceu? E eu aqui acordado??? Não dormi a noite toda! Não, por favor, não, não pode ser, de novo nãããããããão...
- Antonio Carlos! Antonio Carlos!!
- Hã? Que foi Maria Amélia, que foi?
- Que saco! Para de gritar. São três da manhã! Me deixa dormir. Acho que você tava sonhando.

- Sonhando? Então...eu tava dormindo?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Nunca esqueça o celular em casa

Três meses sem Anderson.
Três meses chorando de ódio.
Sacrifiquei meu amor por nada.
Jurandir, bem tranquilo, segue sua vida de paraplégico viciado em sexo virtual. Não me conformo com sua traição Jurandir, escreveu Leonora no espelho do banheiro no dia seguinte ao flagra obsceno do marido se masturbando na frente do computador. Imaginava, até ali, ser uma tortura a vida dele. Qual o quê. Ria nas minhas costas, pensava com mágoa. Eu traí Jurandir, é fato. Mas nunca faltei com o respeito. Nunca levei o Anderson pra dentro de casa. Jurandir me traía no computador dentro do nosso quarto! Não perdoo.
Anderson era um bon vivant, ela sabia. Sumiu. Uma pena porque afinal tinham encontrado uma fórmula simples de ser feliz... não fosse seu sentimento de culpa em “supostamente” trair o marido inválido. Burra!
Lembrou do dia do acidente. Fora há 15 anos. Era Ano-Novo. Não existia Lei seca. Todo mundo bebia e dirigia. Jurandir, além disso, se vangloriava das suas proezas de bêbado. Você viu como o carro estava bem estacionado na garagem? Nem sei como fiz aquilo. Não me lembro de nada...e dava risada.
Naquela noite, na famosa virada do ano 2000, quando todo mundo pensava que o mundo ia acabar...e de certa forma acabou. Foi um fim de casamento aparentemente bem-sucedido. Não fosse por um aborto que ela cometera sem ele saber – não quero filhos, isso atrapalharia meus planos de morar bem longe daqui; e quem disse que vamos morar longe daqui? Eu quero filhos, sim – até que eles formavam um belo casal.
Naquela noite, na famosa virada do ano 2000, todo mundo encheu a cara com espumante de cidra ou uísque com Coca-Cola – vontade de vomitar só de lembrar.
Saímos do salão de festas do clube de campo amanhecendo. Jurandir carregava o copo. Mais um gole, só mais um. Eu também estava bêbada. Todo mundo estava. Menos o cavalo na estrada. Ele fazia um quatro bem na nossa frente quando Jurandir atravessou o para-brisa. Só acordei no dia seguinte com uma cicatriz na testa. Jurandir na UTI uma semana. Eu te disse pra colocar o cinto Jurandir. Não precisa, é pertinho. A essa hora não tem trânsito. Não tinha. Só um cavalo sóbrio. Mas ele morreu. O dono sacrificou.
Jurandir também foi sacrificado. Ficou sem o movimento das pernas. Ficou preso na cadeira de rodas. Os primeiros cinco anos dizia que nada se mexia da cintura pra baixo. Nada você entende? Gritava quando Leonora tentava fazer um carinho. Ficou um homem amargo no começo, apático depois. Desisti.
Conheci Anderson. Jurandir, a internet.

O telefone toca. Leonora olha feliz para a foto que aparece no celular. Atende. Uma voz grita enraivecida: sua velha tarada. Seu amante esqueceu o celular em casa e eu vou te matar!

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Um arrepio fúnebre

A gente sempre pensa que é exclusivo. Minha amiga psicanalista disse que quando somos bebês achamos que o seio da mãe é só nosso. E é um amor tão grande que dói muito quando temos de dividir aquele seio com o mundo. É a tal da falta primordial. Depois passamos a existência tentando repor aquele amor, sem sucesso, claro. Porque igual àquele nunca mais.
Filosofando com seus botões Leonora olhava a chuva forte que molhava a paisagem mineira pela janela do ônibus da Viação Aleijadinho que a levaria, finalmente, de Monte Negro até São Paulo. Pensou em voz alta: acredita que nunca saí de Monte Negro? O passageiro ao lado não ouviu. Estava com fones de ouvido. Leonora disfarçou o vácuo. Lembrou da casa da infância. Lembrou da goiabeira e da sua alegria quando ela florescia e era invadida por abelhas bem miudinhas. Leonora gostava de mexer na terra, gostava do cheiro, da textura, gostava do mistério da vida: plantava uma sementinha e brotava um pé de couve. Era bibliotecária porque teve medo de ir pra capital estudar agronomia. Foi covarde.  
Agora não. Agora não teve medo. Teria enfim sua nova vida bem longe – aceitou o convite da amiga Samira pra ficar em seu apê enquanto viajava pelo mundo. Afinal, o aborto realizado no início do casamento estava finalmente justificado. Nada mais a prendia. Nem marido nem amante. Estava totalmente livre. Tinha seis meses pra encontrar emprego e casa pra morar. E uma vida inteira pra visitar aquelas imensas livrarias...e os sebos... ir ao cinema... Tomar sorvete no Ibirapuera... Aprender a andar de bicicleta... acredita? Não sei andar de bicicleta. O vizinho de poltrona permaneceu inerte. Fechou os olhos também e se despediu mentalmente de Jurandir, o marido paraplégico que a manteve naquele relacionamento sem erotismo. Agradeceu a Anderson, o amante, pelos momentos de amor e por ter feito enxergar que ninguém é de ninguém, como cantava Cauby Peixoto. Quem imagina ter fidelidade por parte do parceiro, cônjuge, namorado, amante, ficante, amiguinho de Facebook se ilude.
Amarga você, hein Leo? Leo abriu os olhos sentindo aquela voz entrar em seus ouvidos e percorrer todos os seus vasos capilares como um arrepio fúnebre. Não era o sujeito dos fones de ouvido. Ele permanecia imóvel. Que sono! Ficou com preguiça de procurar de onde vinha a tal voz e fechou os olhos outra vez. Respondeu mentalmente: sim, já fui mais romântica. Mas agora vai ser assim. Nada de romantismo babaca. Minha prioridade é outra. Começo uma nova vida. Novinha. Vou zerar tudo. Nasci hoje.
Um tranco forte e a poltrona de Leo é esmagada pelas ferragens. Leo abre os olhos.
Sangue...fumaça... vidros quebrados... que cheiro horrível! Mas que confusão é essa? Que gritaria! Por que estão chorando? Mamãe!!! O que você está fazendo aqui?
Vim te buscar Leozinha.
Como assim, mãe? Isso é um sonho?
Depois eu explico. Vem cá meu bebê. Me dá sua mão. Vou te contar. O amor cura tudo, Leozinha. Vamos andando.
Flutuando você quer dizer, mãe.

Cúmplice, dona Ana sorri e as duas almas se abraçam.