domingo, 24 de abril de 2016

Essa sua canalhice

Não tem como. Hoje vou dar um fim em tudo. Essa sua miserável apatia me enlouquece.
Acendi um incenso pra ter pelo menos um cheiro bom no ar.
Coloquei mais açúcar na caipirinha pra ter um doce pra sentir.
Outro dia você me trouxe flores. Até chorei, lembra? Mas os chocolates....dei pro cachorro depois de saber das tantas outras presenteadas... Eu sei, você disse, você sempre diz: elas não importam.
Mas essa sua miserável inércia...
Não tem como. Hoje vou ter de dar um fim.
Liguei o ventilador pra ter mais ar.
Traguei a fumaça do charuto pra esquentar o peito vazio. Você deixa ele assim.
Naquele dia, você me deu o anel, lembra?
Eu te beijei por cinco minutos, boca, rosto, olhos, nariz... e você ria, ria... Estava feliz. Mas as cartas... dei pra reciclagem depois que encontrei as trocadas com tantas outras...
Eu sei. Você disse. Você sempre diz. Elas são nada!
Mas essa sua miserável presença...
Não tem como. Hoje vou ter de dar um basta.
Já deixei tudo pronto: martelo, cutelo, câmeras desligadas, as malas.
Quando você chegar com sua sedução eu vou te embriagar com aquele vinho, você sabe qual, aquele do encontro, o único que valeu a pena...por que pegaria um avião?...você disse, você sempre diz.
Tirei as crianças de casa e liguei o som.
Quando você dormir nos meus braços - sim, você vai adormecer feito um príncipe, como sempre, aninhado depois do amor, nos meus seios - nessa hora, vou dar um fim em tudo. Não tem como.
Essa sua miserável canalhice me excita.

sexta-feira, 25 de março de 2016

Enrugada pelo ódio

Era uma raiva inominável.
Uma raiva gigante, mas Arlete só percebeu isso durante uma de suas sessões de análise.
Odiava sua mãe com todas as forças de sua alma, agora, pequena, enrugada pelo ódio.
Descobrira que não era filha de seu pai. Por instantes ficou feliz. Não gostava mesmo de Álvaro, o ávaro, pão duro, egoísta, capaz de comprar um sonho na padaria pra comer sozinho e negar um Danoninho pras filhas no supermercado.
Mas a mãe mentir... Isso não estava no seu script. Fora pega se surpresa. Leu alguns papéis escondidos no fundo do armário. Adorava remexer nas coisas de sua mãe.
Quem procura acha. Viu uma certidão de nascimento diferente. Lá estava seu nome, o de sua mãe e no lugar do pai, um nome que nunca ouvira falar. Dos avós paternos também.
Mas ela tinha uma outra certidão. Com o nome de Álvaro, o ávaro, e dos avós que ela conhecia como sendo seus avós e por quem até nutria um certo amor.
Agora tinha dois pais. E nenhuma mãe. Não. Não podia admitir que sua mãe tivesse mentido durante tantos anos! Ela não seria mais sua mãe. Que tipo de mãe é uma mãe que mente, esconde, camufla?
A dela era. Será que quando crescesse ela também seria assim? Tinha tanto medo de ficar igual à mãe.
E quanto mais medo, mais parecida. Pra não correr riscos decidiu não ter filhos nunca.
Desse modo não teria de mentir. Nem de ser odiada.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Sons noturnos

Você sabe que está com insônia. Tenta dormir e não consegue.
Pra que insistir? Levanta logo dessa cama, porra. Essa maldita aí do seu lado ronca feito uma porca. Que nojento. Falar assim da mãe dos meus filhos. Mas é o que ela é hoje. Uma porca lazarenta, gorda, com mau-hálito. E ronca! Maldita insônia, hein? Quem mandou ir deitar mais cedo? Você já sabe que quando faz isso acorda no meio da noite com a geringonça ruminando do seu lado. Tenta dormir, vai. Fecha os olhos, reza, tenta se concentrar num único pensamento, lembra de um mantra! Não funciona. Não funciona? Como assim? Não é você o budista paz e amor? Isso. Rola de um lado pro outro. Acende a luz, bebe um pouco da água que está no copo do criado-mudo. Apaga a luz, afofa o travesseiro, e deita a cabeça sorrindo feliz e pensa: agora, vai.
Fecha os olhos, mantra – oh, mani padme rú, oh mani padme rú -, reza, sua frio, que calor da porra, joga a coberta no chão, ouve a moto que sobe a rua, o guarda-noturno apitando no final do quarteirão...lá longe, o trem de carga que passa discreto no silêncio da noite. E a mente? Um turbilhão. Milhões de pensamentos. Caralho, que saco! Agora você não sabe mais se está acordado ou dormindo porque tem a sensação de que está sonhando, mas ao mesmo tempo ouve todos os sons noturnos. Os estalidos dos móveis, e o ronco da megera, claro. Dá uma cotovelada na infeliz. Não adianta. Não adianta os cambau. No mínimo ela se vira de lado e diminui a sinfonia. O vizinho da casa ao lado se levanta para ir ao banheiro. Pela hora deve ter dado uma na mulher e agora foi se lavar. Na sequência vai ela. Parede fina do cacete. Da pra ouvir os caras no banheiro, que inferno. Fiquei de pau duro. Mais essa agora. Vai levantar? Nem tenta. Fica deitado. Larga o celular, imbecil. Conferir que horas são nesses casos só piora a sua sensação de impotência diante do seu desejo de dormir e do seu cérebro que teima em permanecer acordado.
Puta que o pariu eu preciso dormir. Levanto cedo amanhã. Amanhã? Cê tá de gozação. Num tá ouvindo o primeiro ônibus passar na rua de cima? o primeiro pio do bem-te-vi? Jesus, me ajuda! Você acabou de descobrir que tá há quatro ou cinco horas acordado quando deveria ter dormido. Bate um desespero infernal, não é? você tinha um compromisso logo pela manhã? fudeu. Não tem remédio mesmo. Que luz é essa que vem da janela? Espera um pouco. Não acredito. Já amanheceu? E eu aqui acordado??? Não dormi a noite toda! Não, por favor, não, não pode ser, de novo nãããããããão...
- Antonio Carlos! Antonio Carlos!!
- Hã? Que foi Maria Amélia, que foi?
- Que saco! Para de gritar. São três da manhã! Me deixa dormir. Acho que você tava sonhando.

- Sonhando? Então...eu tava dormindo?

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Nunca esqueça o celular em casa

Três meses sem Anderson.
Três meses chorando de ódio.
Sacrifiquei meu amor por nada.
Jurandir, bem tranquilo, segue sua vida de paraplégico viciado em sexo virtual. Não me conformo com sua traição Jurandir, escreveu Leonora no espelho do banheiro no dia seguinte ao flagra obsceno do marido se masturbando na frente do computador. Imaginava, até ali, ser uma tortura a vida dele. Qual o quê. Ria nas minhas costas, pensava com mágoa. Eu traí Jurandir, é fato. Mas nunca faltei com o respeito. Nunca levei o Anderson pra dentro de casa. Jurandir me traía no computador dentro do nosso quarto! Não perdoo.
Anderson era um bon vivant, ela sabia. Sumiu. Uma pena porque afinal tinham encontrado uma fórmula simples de ser feliz... não fosse seu sentimento de culpa em “supostamente” trair o marido inválido. Burra!
Lembrou do dia do acidente. Fora há 15 anos. Era Ano-Novo. Não existia Lei seca. Todo mundo bebia e dirigia. Jurandir, além disso, se vangloriava das suas proezas de bêbado. Você viu como o carro estava bem estacionado na garagem? Nem sei como fiz aquilo. Não me lembro de nada...e dava risada.
Naquela noite, na famosa virada do ano 2000, quando todo mundo pensava que o mundo ia acabar...e de certa forma acabou. Foi um fim de casamento aparentemente bem-sucedido. Não fosse por um aborto que ela cometera sem ele saber – não quero filhos, isso atrapalharia meus planos de morar bem longe daqui; e quem disse que vamos morar longe daqui? Eu quero filhos, sim – até que eles formavam um belo casal.
Naquela noite, na famosa virada do ano 2000, todo mundo encheu a cara com espumante de cidra ou uísque com Coca-Cola – vontade de vomitar só de lembrar.
Saímos do salão de festas do clube de campo amanhecendo. Jurandir carregava o copo. Mais um gole, só mais um. Eu também estava bêbada. Todo mundo estava. Menos o cavalo na estrada. Ele fazia um quatro bem na nossa frente quando Jurandir atravessou o para-brisa. Só acordei no dia seguinte com uma cicatriz na testa. Jurandir na UTI uma semana. Eu te disse pra colocar o cinto Jurandir. Não precisa, é pertinho. A essa hora não tem trânsito. Não tinha. Só um cavalo sóbrio. Mas ele morreu. O dono sacrificou.
Jurandir também foi sacrificado. Ficou sem o movimento das pernas. Ficou preso na cadeira de rodas. Os primeiros cinco anos dizia que nada se mexia da cintura pra baixo. Nada você entende? Gritava quando Leonora tentava fazer um carinho. Ficou um homem amargo no começo, apático depois. Desisti.
Conheci Anderson. Jurandir, a internet.

O telefone toca. Leonora olha feliz para a foto que aparece no celular. Atende. Uma voz grita enraivecida: sua velha tarada. Seu amante esqueceu o celular em casa e eu vou te matar!

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Um arrepio fúnebre

A gente sempre pensa que é exclusivo. Minha amiga psicanalista disse que quando somos bebês achamos que o seio da mãe é só nosso. E é um amor tão grande que dói muito quando temos de dividir aquele seio com o mundo. É a tal da falta primordial. Depois passamos a existência tentando repor aquele amor, sem sucesso, claro. Porque igual àquele nunca mais.
Filosofando com seus botões Leonora olhava a chuva forte que molhava a paisagem mineira pela janela do ônibus da Viação Aleijadinho que a levaria, finalmente, de Monte Negro até São Paulo. Pensou em voz alta: acredita que nunca saí de Monte Negro? O passageiro ao lado não ouviu. Estava com fones de ouvido. Leonora disfarçou o vácuo. Lembrou da casa da infância. Lembrou da goiabeira e da sua alegria quando ela florescia e era invadida por abelhas bem miudinhas. Leonora gostava de mexer na terra, gostava do cheiro, da textura, gostava do mistério da vida: plantava uma sementinha e brotava um pé de couve. Era bibliotecária porque teve medo de ir pra capital estudar agronomia. Foi covarde.  
Agora não. Agora não teve medo. Teria enfim sua nova vida bem longe – aceitou o convite da amiga Samira pra ficar em seu apê enquanto viajava pelo mundo. Afinal, o aborto realizado no início do casamento estava finalmente justificado. Nada mais a prendia. Nem marido nem amante. Estava totalmente livre. Tinha seis meses pra encontrar emprego e casa pra morar. E uma vida inteira pra visitar aquelas imensas livrarias...e os sebos... ir ao cinema... Tomar sorvete no Ibirapuera... Aprender a andar de bicicleta... acredita? Não sei andar de bicicleta. O vizinho de poltrona permaneceu inerte. Fechou os olhos também e se despediu mentalmente de Jurandir, o marido paraplégico que a manteve naquele relacionamento sem erotismo. Agradeceu a Anderson, o amante, pelos momentos de amor e por ter feito enxergar que ninguém é de ninguém, como cantava Cauby Peixoto. Quem imagina ter fidelidade por parte do parceiro, cônjuge, namorado, amante, ficante, amiguinho de Facebook se ilude.
Amarga você, hein Leo? Leo abriu os olhos sentindo aquela voz entrar em seus ouvidos e percorrer todos os seus vasos capilares como um arrepio fúnebre. Não era o sujeito dos fones de ouvido. Ele permanecia imóvel. Que sono! Ficou com preguiça de procurar de onde vinha a tal voz e fechou os olhos outra vez. Respondeu mentalmente: sim, já fui mais romântica. Mas agora vai ser assim. Nada de romantismo babaca. Minha prioridade é outra. Começo uma nova vida. Novinha. Vou zerar tudo. Nasci hoje.
Um tranco forte e a poltrona de Leo é esmagada pelas ferragens. Leo abre os olhos.
Sangue...fumaça... vidros quebrados... que cheiro horrível! Mas que confusão é essa? Que gritaria! Por que estão chorando? Mamãe!!! O que você está fazendo aqui?
Vim te buscar Leozinha.
Como assim, mãe? Isso é um sonho?
Depois eu explico. Vem cá meu bebê. Me dá sua mão. Vou te contar. O amor cura tudo, Leozinha. Vamos andando.
Flutuando você quer dizer, mãe.

Cúmplice, dona Ana sorri e as duas almas se abraçam.

sábado, 16 de janeiro de 2016

coração albergue

não precisa entender tanto faz a ordem quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é despedaçar palavras cortá-las em várias partes esquartejá-las e fazer você engolir fração por fração até ser um inteiro completo desse amor fragmentado que eu teimo em cultivar todos os dias desde sempre desde quando nem havia a luz nem o verbo e se fez a dor que só os poetas entendem e você teima em dizer não existe é coisa do imaginário mas a minha é palpável é sanguinolenta malcheirosa putrefata e está à deriva à tona descoberta e você ignora ou finge e nessa hora salto no abismo desse desejo hermético obscuro inerte como as estrelas já mortas do universo vomitando os excrementos da saudade do seu toque nessa distância de anos luz que faz do nosso amor o mais antigo que invadiu meu coração quando me apaixonei pelas palavras não ditas pelas entrelinhas pelos escaninhos do tempo meu querido meu amigo desde sempre desde antes da criação do cosmos vou te amar aqui e morar em seu coração-albergue que abriga todos os desvalidos inclusive eu entrei assim como um sem chão e você me deu de beber dos seus beijos me deu de comer do seu corpo  fui ficando e agora tenho direitos adquiridos por usucapião a sua ração diária de carinhos no café da manhã almoço e jantar petiscos de sexo nos intervalos meu amor talvez o que você nem saiba é que agora seu sangue circula no meu sistema na velocidade acelerada das manhãs apocalípticas do meu entardecer e antes que o sol se ponha definitivamente anote mais uma vez o que fica eu te amo mas não precisa entender tanto faz a ordem quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é despedaçar palavras cortá-las em várias partes esquartejá-las e fazer você engolir fração por fração até ser um inteiro completo desse amor fragmentado coisa do imaginário desde sempre desde quando nem havia a luz nem o verbo desde antes da criação do cosmos você teima em dizer não existe pelas entrelinhas pelos escaninhos do tempo você me deu de beber dos seus beijos me deu de comer do seu corpo  fui ficando e agora tenho direitos adquiridos por usucapião a jantar petiscos de sexo nos intervalos desse desejo hermético obscuro inerte como as estrelas já mortas vomitando os excrementos da saudade do seu toque vou te amar aqui e para sempre morar em seu coração-albergue que abriga todos os desvalidos inclusive eu entrei assim como um sem chão mas não precisa entender tanto faz a ordem quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é te amar aqui e para sempre morar em seu coração-albergue coisa do imaginário do meu entardecer quando nem havia a luz nem o verbo salto no abismo à deriva vomitando sanguinolenta malcheirosa putrefata quando olho pra esses jardins ensimesmados minha vontade é despedaçar palavras anote mais uma vez o que fica eu te amo

Uma gaiola saiu à procura de um pássaro

Estranho? Nem um pouco. Uma gaiola sem seu pássaro é como queijo sem goiabada.
Uma gaiola que se preze tem de ter no mínimo um pássaro do lado de dentro.
Quando eu crescer também vou sair à procura do meu. Quero um pássaro bem bonito, forte, alto, com um bico bem grande, olhos azuis e asas multicoloridas e que cante só para mim o dia todo.
Minha mãe sempre diz que toda gaiola, mais cedo ou mais tarde, encontra seu pássaro. Prefiro mais cedo...Só que ela não concorda com esse modismo de agora de gaiola que sai à procura de seu pássaro. Mamãe é mais conservadora, sabe como é, à moda antiga... para ela, uma gaiola de família deveria ficar quietinha em casa esperando o pássaro bater na sua portinhola.
- Se para cada panela existe uma tampa; se para cada pé de sapato há o par correspondente, é óbvio que para cada gaiola tem um pássaro certo, filosofa minha mãe.
Eu tenho cá minhas dúvidas se esta fórmula dá certo porque sei de tantas gaiolas vazias e solitárias na cidade. Aqui na minha rua mesmo tem umas três já meio passadas...se não saíram em busca de seus pássaros quando mais novas, acho um pouco difícil que encontrem. Sem contar que como elas nunca tiveram suas portinholas abertas...agora estão um pouco enferrujadas...
Na minha família mesmo tem uma tia que saiu à procura de seu pássaro, mas voltou de gaiola vazia. Coitada. Mamãe disse que ela teve até depressão. Ouvi dizer que se um pássaro abre sua portinhola e vai embora fica mais difícil encontrar outro que queira viver numa gaiola que já foi usada, sabe? Por isso tem tanta gaiola mal falada por aí! É verdade! São aquelas gaiolas que já tiveram vários pássaros. Um entra e sai danado. Nenhum para. Aí fica com fama ruim.
Mas eu sou muito pequena ainda. Sou uma gaiola em formação. Nem me preocupo com isso. Por enquanto cuido de deixar minha portinhola sempre fechadinha.
Minha mãe diz que hoje em dia é melhor não confiar em ninguém. Minha mãe é uma pessoa meio triste. Deve ser porque ela também é uma gaiola vazia.
Nunca vou esquecer daquele dia. Acordei com ela chorando, pedindo, implorando para o seu pássaro ficar. Ele disse coisas horríveis: que estava cansado de cantar o dia todo, de comer sempre o mesmo alpiste, daquela rotina desgastante de tira jornal, coloca jornal, da água que até o fim do dia ficava morna e empoeirada, de fazer as necessidades praticamente junto com a comida. Um horror! Mamãe bem que tentou. Fez várias promessas, mas não adiantou nada!
Ele estava decidido. Deixou mamãe piando sozinha.


Abigail vem, Abigail vai





Lourival era um gentleman com as mulheres. Todas. Mãe, irmãs, tias, sobrinhas e amigas...ah! muitas amigas...o universo de Lourival girava em torno do feminino.

Lourival tinha uma lista infinita de amigas que sentia o dever de agradar. 

Ficava horas e horas nas redes sociais em intermináveis conversas com suas "amigas".

Ah...impossível não responder àquele sinal sonoro do celular, ou àquela janelinha de bate-papo no computador. Impossível não curtir e comentar um post...se via seu nome marcado então, lá ia Lourival responder. Sempre com um elogio sedutor. Ou uma frase de duplo sentido...

E se a amiga era uma mulher com histórico de doenças, problemas insolúveis, dificuldades financeiras ou quaisquer outras, Lourival já vestia sua fantasia de Super-Homem e lá ia ele salvar a donzela do dragão imaginário, brandindo sua espada de plástico.

Abigail, por sua vez, nossa segunda personagem, que fazia parte da lista interminável de "amigas do Lourival", fantasiava que pra dar conta de tamanha demanda, provavelmente, Lourival mantinha uma minuciosa planilha de atendimento. 

Pela manhã, bem cedinho, ele atenderia Antonia, Bruna ou Camila. Dez minutos para cada uma. Perto da hora do almoço, Dinorá, Elisa e Fernanda. Nesse horário um pouco menos. No café das três da tarde, mais algumas, Kátia, Luiza e Mariluce, um papo um pouco mais prolongado...e assim o tempo era preenchido e, até o final do dia Zélia igualmente teria sido contemplada com a sedução calculada de Lourival. 

No começo da relação (sim, ela jurava que eles tinham uma!), Abigail ocupava muitas horas do status "disponível" de Lourival. Eram conversas carinhosas, amorosas, às vezes quentes, picantes, bem temperadas com a carência afetiva de um e o narcisismo doentio do outro.

Um ano e meio depois gastavam boa parte do (pouco) tempo, que Lourival agora reservava para Abigail, discutindo a relação. O motivo, claro, era as "outras" que, então, recebiam muito mais atenção do Don Juan virtual do que Abigail, que virara uma espécie de...de quê? se perguntava Abigail? o que eu sou na sua vida? Afinal, por que fui entrar nessa? Perguntas que só seu analista poderia ajudá-la a decifrar no meio do deserto analítico onde Abigail mergulhava às terças à noite.

Lourival era casado. Que novidade! E como todo homem casado que deseja ter um harém, dizia a todas que seu casamento era de fachada. Não fazemos sexo há mais de 20 anos... Mas por que não se separa? resposta clássica: porque a santa esposa era doente, coitada, dependia dele pra tudo, como abandoná-la justo nessa situação?... enredo nada original, mas, pasmem queridos leitores, em pleno século 21 ainda existiam mulheres que engoliam tal argumento.  

Verdade ou não nem Abigail nem ninguém nunca saberá, óbviamente. 

Mas Abigail de cara pensou: se não faz sexo com a esposa faz com outra, é óbvio! Homem NENHUM nesse planeta fica abstinente tanto tempo. Bingo. Ele acabou confessando com aquele seu ar de inocente útil que, sim, tinha uma amante há milênios. Uma só? Claro! ele disse claramente indignado, afinal, por quem me toma? Uma amante e várias amadas, amáveis.

Lourival prometia que Abigail ocupava um lugarzinho especial em seu coração. Que ela o fazia se sentir como um adolescente...que ela despertava nele um desejo único, especial, avassalador.

E ela deu crédito a todo esse bla blá blá sem dar chance aos seus neurônios avaliarem o quanto esses clichês jurássicos camuflavam o discurso salamandra de Lourival.

Fato é que, para as mulheres, ser amada é fundamental. E os homens querem amar.  Quando uma mulher domina esse axioma lacaniano ela domina o mundo. E esse não era o caso de nossa segunda personagem. 

Afinal, o que queria Abigail? Ela amava amar? Ou amava seduzir? Ou amava ser seduzida? Ah! Freud... vem me salvar!!!

Abigail sofria. No fundo, ela sabia que os "eu te amo" que ele escrevia quase todos os dias pra ela talvez fossem só uma forma de mantê-la ali, naquele lugar. Um lugar que em alguns dias dava muito prazer (tem dias assim, dizia Lourival) e em outros causava muita dor (amanhã melhora, mentia).

Até que um dia Lourival falou que, afinal, outra "amiga" também ocupava um lugarzinho especial em seu coração. Mas que isso não a despejaria do órgão pulsador. Apenas teria de se conformar em dividir o coração dele com a "outra", assim como já dividia outro órgão com a amante oficial. 

Qual o problema? Dizia Abigail pra si mesma, a humanidade é assim, não consegue se contentar com relações monogâmicas, precisa se sentir amada por muitas pessoas ao mesmo tempo e, teoricamente - amar muitas pessoas ao mesmo tempo também. Édipo explica! 

Sim, por trás de seu divã, Freud dizia ser praticamente impossível haver amizade entre homens e mulheres (e nem entre mulheres e mulheres e homens e homens e suas variantes, ou seja, entre pessoas) que não fosse atravessada pelo desejo sexual. O que, convenhamos, a maioria das pessoas nega veementeMENTE. É um mecanismo de defesa pra se proteger das convenções impostas pelo sociedade capitalista homonormativa judaico-cristã repressora etc etc etc (isso não é Freud, é meu mesmo). Mas que o desejo está lá, oculto (e às vezes escancarado), está.

Abigail e Lourival seriam um caso típico das novas relações do século 21? Ou é só um velho enredo com capa da modernidade?

Abigail era só mais uma. Mas durante um tempo acreditou que fosse a única.

Coisas de mulheres apaixonadas. Acreditam em tudo (ou quase tudo), nesse estado insano da condição humana que as obriga a ter posições sub-humanas.

Não sabia o quanto (nem quantas) as outras sabiam (e aceitavam) essa mesma condição. 

Abigail sentia que os cordões do ciúme e da desconfiança lhe conduziriam para um triste desfecho lugar-comum. 

As desconfianças eram devidamente fundamentadas. Não eram coisas da sua cabeça doente - como ele gritava no seu ouvido durante mais uma cena.

Não havia chance para o casal. 

Assim como outras antes dela, Abigail um dia se despediu de Lourival que, por sua vez, disse que lamentava muito, mas que se essa era uma decisão dela, que por ele nada mudaria...mas se ela estava decidida a terminar...o que ele poderia fazer? 


Nada, meu caro.

Abigaís vêm, Abigaís vão.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

A teoria do vovô de Laurinha

O avô de Laurinha, era um fumante inveterado, daqueles que acendiam um cigarro no outro, sabe? Isso foi no tempo em que fumar não era considerado politicamente incorreto e nos maços ainda não se estampavam cadáveres de fetos ou pessoas com as pernas amputadas como consequência do dito cujo. Também era permitido fumar em restaurantes, transportes públicos, de passeio e aviões. Sim. Existiam as bizarras alas de fumantes nos aviões e nos ônibus, que intrigavam a inteligente Laurinha porque, afinal, a fumaça dos cigarros nunca obedecia a linha imaginária que separava a fileira dos sãos da dos viciados.
E seu avô tinha uma teoria muito pessoal para a rebeldia da fumaça as vezes que ela reclamava que a fumaça fedorenta sempre vinha em sua direção quando jogavam dominó na varanda de casa, aos domingos de manhã, esperando o almoço ficar pronto.
Ele fumava Continental sem filtro. E como num ritual tragava e soltava lentamente a fumaça para os lados tomando o cuidado de não atingir a netinha com o veneno.
Tarefa inútil. Claro! A fumaça insistia em ir direto, sem escalas, se enroscar nos caracóis dos cabelos de Laurinha.
Por mais que ela se afastasse, fazendo manobras com o corpinho sempre coberto com vestidinhos de babados e lacinhos, a danada nunca errava o alvo.
Um dia, inocentemente intrigada, Laurinha perguntou para o avô por que a fumaça vinha sempre na sua direção? O avô olhou para a netinha e sorriu aquele seu sorriso maroto. Tentou limpar a garganta do característico pigarro dos fumantes, num esforço de eliminar a secreção que o mataria anos depois de falência pulmonar, e respondeu solenemente com seu meio sotaque espanhol: Ah, minha linda, a fumaça do cigarrillo é atraída solamente pelas pessoas bonitas, assim como tu!
Ingenuamente feliz, do alto de seus 4 aninhos Laurinha disse: Então matei a charada, vovô! Já sei por que a fumacinha branca invade a ala dos não fumantes dentro dos ônibus e aviões: quem se senta lá são as pessoas mais bonitas do mundo!

O vovô quase engasgando com a famigerada em questão, soltou uma contagiante gargalhada cujos chacoalhões levaram seu corpo magro para trás e, na volta, dando uma piscada de olhos, ele jogou uma baforada bem no meio do rosto de Laurinha... para selar sua teoria. 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Agora sou a outra

Foto: Cartier Bresson
Levava a pequena criança pela mão, atravessava o mar de carros na avenida e voltava pra casa. Era assim. Não questionava.
Depois, bebia o chá, comia o bolo e sonhava: agora sou outra mulher.
Feira, açougue, padaria. Fogão, máquina de lavar. Mas hoje... hoje vai ser diferente. Porque agora sou outra mulher.
Coloca o vestido decotado, calça o sapato de domingo, passa o batom e o perfume emprestados, e sai para encontrar seu amor.
No caminho, alimenta o sonho: agora sou uma outra mulher.
O coração acelerado, lugar-comum dos apaixonados, quase para com as lembranças das cenas na sala de estar da casa da melhor amiga. Foram beijos obscenos, pegação, esfrega-esfrega e a promessa de Jurandir: quero te comer todinha. Me liga. Era sua primeira vez como a outra. Mas que importa? Agora sou mesmo uma outra mulher.
E no local combinado, assenta o corpo na cadeira do café. Pede um cappuccino e, suspira, enquanto deseja o marido da amiga, um gostoso tão diferente daquele indigente, pai de sua filha.
Meia-hora, uma hora...o encontro naufragado. Os olhos choram por dentro. O que eu fiz de errado? Agora sou a outra!
Travestida de indiferença, paga a conta pro garçom que, acostumado, adivinha o desfecho do enredo. Mas, não, com ela, não. Afinal, agora ela era uma outra mulher.

Depois, pega a criança pequena pela mão, atravessa de volta o mar de carros e em casa faz sopa de letrinhas. Mistura lágrimas à salsinha, coloca ração para o gato, água para o periquito, tira a roupa do varal... enquanto pensa: agora sou outra mulher.

domingo, 10 de janeiro de 2016

A concepção

Escrever é um ato sagrado. É gravar o abstrato numa dimensão visível e concreta.
É um ritual místico em que entidades habitantes do fantástico penetram sua alma no ato da criação.
Nesse cadinho de alterações de consciência surgem letras que se acasalam com outras letras,vírgulas e acentos e pontos finais e num movimento ondulante erótico-poético dão à luz palavras, frases e períodos completos.
Daí a ideia de "Pajelança das letras".
É intuição com um toque de razão.
É cérebro no ritmo do coração.
É passado, presente e futuro.
É disciplina com rebeldia calculada.
É o retorno do recalcado travestido de ficção.
Penso melhor que escrevo. Escrevo melhor que falo. O que não significa que escrevo bem. Apenas me sinto mais à vontade. Na escrita você pode mudar de ideia a qualquer momento, reescrever, apagar, reler, escrever de novo... já a letra falada... uma vez dita não tem como consertar.
"Pajelança das letras" não tem nenhuma outra pretensão que não seja reunir num único lugar minhas experiências cabalísticas na construção de textos.
Desejar ser lido é o desejo de todo escritor.
E todo escritor é um narcísico carente que além de ser lido quer ser amado. Ou odiado. Desejo nem sempre realizado. Ou nem sempre sabido. Talvez por isso o escritor não para de escrever.
Desejo que meus leitores realizem o meu desejo e o deles mesmos. Afinal, a leitura também é movida por um desejo secreto de se ter um prazer solitário. Tão solitário quanto o ato de escrever.
Bons encontros literários pra todos nós!